sábado, 31 de março de 2012

O inventor da maior coleção de títulos do país


MOSSORÓ – O que você diria de um homem que toma dinheiro emprestado de agiotas para editar livros que não vende, mas doa? Isso no Brasil, um país onde se vende por ano menos de um livro por habitante e que registra um índice de analfabetismo funcional – pessoas incapazes de utilizar a leitura e a escrita para resolver situações do próprio cotidiano – de 30,5%.

Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia montou assim, com empréstimos de agiotas, colaborações de amigos e vez por outra doações oficiais, a Coleção Mossoroense, a maior do Brasil, com 3 mil títulos.

'É um negócio de doido que começou em 1949', conta Rosado, hoje com 79 anos, morador ilustre de Mossoró, no Rio Grande do Norte. 'Um homem de juízo não faria isso', brinca.

Dentre os 3 mil títulos da coleção, mais de mil são livros – e mais de 700 dedicados à seca. A Coleção Mossoroense é responsável pela maior bibliografia do País sobre a grande praga do Nordeste. 'É a linha mais importante', explica o criador da coleção.

'É uma verdadeira biblioteca sobre a seca', atesta o geógrafo Aziz Nacib Ab'Saber, professor da Universidade de São Paulo e amigo de Rosado. 'É quase impossível encontrar textos antigos, como sobre a seca no fim do século 19, mas a coleção do Vingt-Un tem.'

Um dos destaques é O Livro das Secas, que reúne estudos antigos e os mais recentes sobre o tema, explica Ab'Saber.

Dinheirinho emprestado

Muitos dos autores que publicou, Rosado conheceu pessoalmente. Ele promoveu a estréia no prelo de mais de 260 escritores. Rosado conta que até professores universitários de São Paulo, que precisam publicar obras para manter o índice de produtividade, apelam para ele. Mas dinheiro, que seria bom, chega pouco.

'Não recebo ajuda da Secretaria da Cultura ou do Ministério', afirma. 'Dinheiro para a cultura neste País é uma desgraça.'

Para financiar suas edições – em média de 300 exemplares por títulos –, Rosado começa passando o chapéu entre os amigos. 'Eles doam R$ 10, R$ 20 cada', diz. 'São pessoas que respeitam a importância da coleção.' Quando a verba é insuficiente, ele apela para o inimigo número 1 do brasileiro endividado. 'Tomo um dinheirinho emprestado de agiotas e dou um jeito.'

Recentemente a Sudene doou R$ 18 mil para a Coleção Mossoroense. Com a verba, Rosado diz que pretende reeditar Sesmarias do Rio Grande do Norte.

Os livros não dão retorno comercial, já que são doados. 'Eles são distribuídos para estudiosos', diz Rosado. Só uma vez por ano, em 25 de setembro, data de seu aniversário, que foi transformada em Mossoró na Noite da Cultura, os exemplares são postos à venda, na loja maçônica Jerônimo Rosado, batizada em homenagem a seu pai.

Vinte e um

Vingt-Un Rosado é o filho mais novo de Jerônimo, um farmacêutico que a partir da sexta criança parece que ficou com preguiça de batizar a numerosa prole e passou a enumerar os descendentes, primeiro em português, depois em francês.

'Quando seu Rosado começou a fazer gente tascou esses nomes', conta o caçula, 21 em francês.

Com os mais jovens, o pai nem variava mais o primeiro nome. A partir do 15.º, todos os homens foram chamados de Jerônimo seguido do número correspondente, até Vingt-Un. Cinco mulheres, antes de seu ordinal, receberam o nome damãe, Isaura. Um dos homens, o nono, também foi chamado Isauro. A família teve ainda um Tércio, uma Maria, uma Vicência, Laurentinos – três ao todo, só um deles numerado – e uma Laurentina.

O nome nunca incomodou os Rosados. 'Na escola, a brincadeira era só na primeira semana', conta Vingt-Un. 'Depois os colegas se acostumavam.'

Graças a Jerônimo e ao sucesso político de sua prole o Rio Grande do Norte tem um município hoje com o curioso nome de Dix-Sept Rosado, batizado em homenagem ao 17, que foi prefeito de Mossoró em 1948 e governador do Estado em1950.

Os nomes ordinais foram passados às novas gerações e já circulam por Mossoró Dix-Sept, Vingt e Vingt-Un Neto.

Uma biblioteca

Vingt-Un Rosado conta que se apaixonou por livros depois de ouvir uma palestra em Mossoró de Luis da Câmara Cascudo. 'Ele envenenou todo mundo', lembra. 'Saímos todos apaixonados pela cultura.'

Aos 20 anos, Rosado escreveu sua primeiro obra, Mossoró, contando a história do município. A edição foi paga pela mãe. Apesar da paixão pelas letras, o caçula dos Rosados resolveu estudar agronomia. Formou-se em Lavras, onde conheceu a mulher, a socióloga América, de 78 anos.

De volta a Mossoró, ele deu uma importante contribuição à cidade. Convenceu o irmão Dix-Sept, candidato a prefeito, a incluir em seu programa a construção de uma biblioteca.

'Com cinco dias de empossado fez', lembra Rosado. 'Um homem que tinha só o primeiro grau.' Segundo o irmão caçula, o prefeito passava todos os dias por lá. A obra foi batizada em homenagem a um sargento da Aeronáutica, Nei Pontes Duarte, que não morava em Mossoró, mas todo mês, assim que recebia a aposentadoria, comprava um livro e mandava para a biblioteca. 'Ele doou mais de 4 mil', diz o editor.

Seguindo a tradição da família, que já se havia empenhado pela instalação de escolas no município, o Rosado mais novo fundou a Escola Superior de Agronomia de Mossoró, em 1967. Também candidatou-se a prefeito, um ano depois, mas não se elegeu. Foi derrotado por 94 votos.

'Não sei se a cidade perdeu, mas eu lucrei', brinca. 'Prometi na campanha fazer mil obras, eu ia me lascar.' A derrota foi para o currículo: candidato derrotado à Prefeitura.

Dois anos depois o editor candidatou-se a vereador. Foi o mais votado da história de Mossoró. 'Acho que a cidade quis fazer reparação', diz. Exerceu seu mandato de 1973 a 1977.

Nessa época a Coleção Mossoroense entrava em sua segunda fase. Quando começou, em 1949, era patrocinada pela Prefeitura. Em 1974 passou a ser vinculada à escola de agronomia, até 1994, quando passou para a Fundação Vingt-Un, dirigida por um dos cinco filhos dele.

Autores regionais

Nos últimos cinco anos, a Coleção Mossoroense tem editado em média 205 títulos por ano. Quando a obra é importante a tiragem é maior. 'Algumas chegam a ter 3 mil exemplares', explica Rosado. A coleção alcançou a marca dos 3 mil títulos com Viagem às Raízes, obra de Almino Affonso.

Além da reedição de obras importantes, como os estudos de botânica de Philipp Von Luetzelburg, Rosado orgulha-se de ter dado oportunidade a autores regionais que dificilmente teriam conseguido publicar um livro nas grandes editoras brasileiras.

'Ele é criticado porque não seleciona o que é publicado', diz Cid Augusto da Escóssia Rosado, de 28 anos, parente de Vingt-Un Rosado e considerado por ele como um dos expoentes da nova geração de escritores de Mossoró. Cid Augusto considera a crítica injusta. 'No Brasil não há espaço para novos talentos', diz. 'Bom ou ruim é relativo, em arte você pode dizer que gosta ou não.'

Como exemplo da contribuição de Rosado, Cid Augusto cita a edição das obras de Raimundo Nonato da Silva, um nome que o editor da Coleção Mossoroense cita com a mesma emoção e admiração que o jovem escritor da família. Silva chegou a Mossoró como retirante em 1919. Analfabeto, começou como engraxate. Terminou a vida como juiz. Escreveu 30 títulos na série Minhas Memórias do Oeste Potiguar. Entre os favoritos de Rosado está Memórias de um Retirante, em que Silva conta sua história. 'Foi o maior memorialista de Mossoró', diz Rosado.

Pé de boi

O inventor da Coleção Mossoroense mora em uma casa ampla, próxima à escola de agronomia. Ali está instalada sua biblioteca. Com problemas auditivos, não fala ao telefone, mas pessoalmente se comunica sem problemas. 'É uma pessoa de cultura múltipa', resume o professor Ab'Saber.

Em setembro de 1999, quando completou 79 anos, ganhou toda a edição de um jornal em sua homenagem. Empresas instaladas no município, como a Petrobrás e a concessionária da Volkswagen, e as prefeituras da região fizeram anúncios publicitários especiais para a publicação. Sua foto não está em todos porque alguns políticos resolveram aproveitar a ocasião para aparecer. Mas seu nome não faltou.

A criatividade de algumas propagandas é digna do pai de 'seu' 21. A revendedora de automóveis chamou-o de 'veículo da cultura'. Uma loja de materiais de construção descreveu-o como 'a chave do sucesso da cultura mossoroense'. A Granja São Camilo declarou-o 'mossoroense da gema'; a Câmara Municipal, 'o legislador de nossa cultura'; e um posto de gasolina, 'o carro-chefe de nossa história – Há 79 anos abastecendo de cultura os mossoroenses, movido pelo combustível da abnegação'.

Famoso pelos generosos elogios que faz a terceiros, Rosado devolve com humildade a homenagem. 'Sempre teve muita gente inteligente em Mossoró', diz. 'Mas eu não estou nessa categoria', afirma. 'Sempre fui pé de boi.' 

Fonte: O ESTADO DE SÃO PAULO - 14/05/2000 - Por Rebeca Kritsch 


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